19/06/2025
Corre, Negrinho... voa, Negrinho
Tua ronda é precisa
Voa, Negrinho, mostra a trilha
No sinuelo do tempo novo tu levanta o que foi negado Lá onde o açoite cala, teu passo deixa recado
Corre leve, Negrinho do Pampa, tua vela é farol no breu Trote ƒirme nas cancha da alma, tua luz é caminho dos seus
Rente ao chão no descampado noturno A luz da tua vela clareia o inƒinito
Negrinho de galope manso, de parceiros conƒiantes Cada um carrega a ausência de um pampa esquecido
No breu do não saber
Tu acendes a dignidade que te negaram Um pampa negro, paleteado do peito
Escondido sob a fumaça branca, brava, cerrada...
Corre, Negrinho… voa, Negrinho Deixe que te vejam no escuro véu Tua ronda são suas lembranças Teu galope sobe pro céu...
Alupo, Alupo... licença, meu senhor
Não tem tropa ou cavalo que me faça estancieiro Perdão pela palavra: somos dois renegados
Na querência do Brasil, mal somos enxergados Mas quem sabe... se eu lhe trouxer um achado da noite?
Da nuvem da memória, só se lembram do açoite
Achei uma coroa – e eu sei a quem pertence
Se o senhor me ouvir, conto a história com reverência: É sobre um Príncipe, preto feito e
Que mal pensa o brasileiro de sua existência
Jamais o Negrinho saberia explicar porque o dono dos caminhos e senhor das histórias o convocara para esta missão. Atendendo ao chamado, revelou seu achado...
Atento, Bará se pôs a ouvir o menino, que passou a lhe contar sobre o príncipe de Ajuda, vindo do Benin: Custódio Joaquim de Almeida, ou Osuanlele Okizi Erupê. A cabeça coroada por Sakpatá, o homem que lutava em suas terras pelo direito de existir livremente, era líder da resistência, das revoltas. Em nome da segurança de seu povo, foi exilado e, no jogo de búzios, viu seu destino apontado para o Brasil.
Acalentado, seu caminho foi abraçado pelos deuses do desconhecido desta nova terra. O mar estava no meio do tabuleiro e a sorte do caminho era de quem respondia primeiro. No porto do passado, ficou a mãe terra.
Foi quando o vento da palha que dança chegou, desembarcou primeiro na Bahia, ventou e foi para o Rio de Janeiro. O barulho da fibra se batendo no solo só dançou e levantou terra quando chegou ao Rio Grande.
O poder que trazia dos séculos se restabeleceu, e pelos infinitos horizontes das querências gaúchas espalhou-se a real presença de um negro Príncipe Africano.
Coroado Príncipe dos Mendigos, pois o povo atendia. Príncipe Curandeiro e Macumbeiro, era feiticeiro. Rei das mandingas e dos despachos. Revirava a alma dos necessitados com folhas, rezas e toques que só compreendiam os antigos africanos. Um trono de fumaça que exalava o ancestral.
Tornou-se temido e respeitado a ponto de fazer a burguesia dançar consigo o dueto de reverências. Chefe dos pobres, todos vindos de um negro Brasil recém-liberto que estava sob sua influência, era o representante dos vadios, da cidade baixa, de malandros e vagabundos. Uma história cheia de mistérios que merece cuidado.
Enquanto desviava as atenções sobre sua famosa e misteriosa figura na elite, enquanto recebia em sua casa nas escuras noites porto-alegrenses os chefes de Estados, governadores, entre outros, o Príncipe organizava seu povo no fundo do quintal, por detrás da capela, por detrás dos santos.
Uniu por um único toque, único tambor, uma África despedaçada pelo horror das invasões. E foram chegando… o que lá eram diferentes povos, aqui se tornaram os remendos de uma alma, os remendos da cor com linhas de sobrevivência.
De mansinho, pés rastejos e descalços, no embalo do ilu, juntaram-se as Nações de Oyó, Jeje e Nagô, os negros Cambinda e também de Ijexá.
Sob o trono do Príncipe das Encruzilhadas, cruzaram distintas heranças e entronaram o Deus da comunicação como seu principal representante em comum, abrindo caminhos entre as diferenças e unindo a todos para resistir ao tempo.
O assentaram pela cidade, e no Mercado o cruzeiro de BARA' virou o encontro de todos. A chave da eternidade.
Negritude resplandecente e consciente, se reconstituindo, de nome resistência, de sobrenome tambor. E o BATUQUE nasceu.
Carrego a coroa numa mão, noutra, a chave campeira do porvir
O Príncipe já se foi, se encantou nos passos de Sakpatá
E bailou sua última dança no terreiro do tempo
Fui eu quem mandou buscar, no escuro do esquecimento
A coroa perdida de um reinado que ainda vai ser teu
Serás, Negrinho, com outros da tua tropa
Príncipes do sol nascendo no campo limpo
Onde nossa gente não vai ser mais açoitada
Nem sumida na névoa braba do racismo
Do abandono, da violência
Do tempo que tentaram nos calar
Vão beber das águas de um Rio Grande Que corre nas veias africanas do Sul do Brasil
E assim será:
Bará, então, disse que nesse Rio Grande onde o Príncipe se encantou assentou-se um novo rumo, um novo Sul, africano e pouco conhecido, com um destino certo de expandir sua força para as terras continentais deste país, que tanto tem de África em outros conhecimentos. Foi quando apresentou ao Negrinho o Xirê do Batuque, a religiao com mais adeptos e casas abertas no Brasil, que é fruto da organizaçãoo das diferentes naçães unidas pelo Príncipe Custódio, que firmou a negritude do Sul de um País que não a vê persiste em suas próprias lutas. É como se sentem.
Contam com o movimento da espada de Ogum e Oyá, com a justiça de Xangô. Com a esperança dos Ibejis e a obstinação de Odé e Otim. Estão com Obá em uma dança de cura e segredos, onde Ossain e Xapana também são sacerdotes. Com a destreza de Oxum e o acalanto de Iemanjá, firmam seus Oris para servirem ao pai Oxalá em suas missões de paz e dignidade para os seus iguais.
Estão nos assentos de Bará espalhados pela cidade, no cruzeiro do Mercado e na procissao de fé que tem como terreiro a Igreja do Rosário, um rito que simboliza a ocupação da cidade pela esquecida corte da realeza africana.
Corte real esta que espalhou sua mancha preta, a cor do trono do principado ocultado que revive nos contos, nos mitos e na oralidade de seus súditos.
Versaram em alto e bom som:
“Nós não éramos nascidos/Nossa mãe não pôde conhecê-lo/O já então falecido Príncipe africano que, por capricho do destino, desembarcou no Rio Grande/Mas o tempo passou/E, por pouco, não perdemos nossa identidade/Como uma prova do destino, tivemos que lutar bravamente/Para merecermos a nossa velha imortalidade.”
Imortais nos toques do tambor de sopapo, nos movimentos quilombolas que resistem e nas espadas, coroas e bandeiras dos Maçambiques de Osório.
Estão nos estandartes de Onira, herança da negritude, o cortejo onde seu Rei é preto e a Rainha também. Baila a porta-estandarte ao lado dos Comanches que, ano após ano, sorriem na avenida para não se tornarem um espaço vazio numa passarela que não contará suas histárias.
A cultura negra do Rio Grande do Sul está assentada na memória do velho Príncipe de Sakpatá, o homem que firmou o Bará tão profundo que a terra respira os ecos de sua real presença preta, que não abaixa a cabeça.
E que assentou um Brasil inteiro quando refez o trono de Zumbi como o rei do Brasil de cor, fazendo de sua data o maior marco do sentido de liberdade. Feitiçaria ensinada pelo velho Custo´dio, que ensinou este Bará a abrir os caminhos de seu povo.
Bará ensinou ao Negrinho o que aprendeu com Custódio: a ser rei e a servir. O senhor das chaves mostrou ao menino o caminho da eternidade: a chama da memória.
Por isso, a partir de agora, o Príncipe da nova história é um menino negrinho que deu cera, pavio e fogo para tantos outros encontrarem as estradas da liberdade, para sobreviverem no formigueiro grande de costumes malditos que tenta matar aos pouquinhos os pretos do Rio Grande.
Enquanto sobrevivem na luz da lembrança, alimentam as velas de outros pretinhos e pretinhas que pastoreiam esse país para salvar o corpo de um Negro inteiro, que será coroado a céu aberto de dia claro, e, quem sabe, ganhará asas para voar com as águias e laçar das nuvens as injustiças desse país.
BARÁ ORDENA:
CORRAM, NEGRINHOS… VOEM, NEGRINHOS DEIXEM QUE SIGAM VOCÊS
SUAS RONDAS SERÃO DE VITÓRIAS O MUNDO PRECISA LHES VER
AUTORES DO ENREDO:
ANDRÉ RODRIGUES, FERNANDA OLIVEIRA, JOÃO VITOR SILVEIRA E MARCELO DAVID MACEDO
TEXTOS:
ANDRÉ RODRIGUES, JOÃO VITOR SILVEIRA E MARCELO DAVID MACEDO
CARNAVALESCO:
ANDRÉ RODRIGUES
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SINOPSE INSPIRADA NO POEMA “NEGRINHO DO PASTOREIO”, DE JAYME CAETANO BRAUN
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“E NAN T?? E NAN T?? E D? E NAN T??
ENAN T?? NU E AONON DAHO”
ORAÇÃO PARA SAKPATÁ, QUE DIZ “TUDO VAI DAR CERTO (ASSIM SEJA)/EU TE DIGO (ASSIM SEJA)/TUDO VAI DAR CERTO.”
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“COMEÇO, MEIO E COMEÇO”
TRECHO EXTRAÍDO DE UMA CITAÇÃO DE ANTÔNIO BISPO DOS SANTOS, O NÊGO BISPO (1959-2023).
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NÓS NÃO ÉRAMOS NASCIDOS/NOSSA MÃE NÃO PÔDE CONHECÊ-LO/O Á ENTÃO FALECIDO PRÍNCIPE AFRICANO QUE, POR CAPRICHO DO DESTINO, DESEMBARCOU NO RIO GRANDE/MAS O TEMPO PASSOU/E, POR POUCO, NÃO PERDEMOS NOSSA IDENTIDADE/COMO UMA PROVA DO DESTINO, TIVEMOS QUE LUTAR BRAVAMENTE/PARA MERECERMOS A NOSSA VELHA IMORTALIDADE.”
POEMA DE MARCUS ALMEIDA, BISNETO DE CUSTÓDIO, DE 1993.